quarta-feira, 9 de fevereiro de 2011

Fazendo de conta de que não é conosco

Por Fábio Konder Comparato*

Há dois meses, exatamente em 24 de novembro de 2010, o Brasil foi condenado pela Corte Interamericana de Direitos Humanos, no caso conhecido como “Guerrilha do Araguaia”. A imprensa, o rádio e a televisão, como esperado, limitaram-se a noticiar o fato segundo o estilo de um famoso ministro da justiça do regime militar: “Sem comentários”.

Até aí, conforme o ditado, “tudo como dantes no velho quartel de Abrantes”; o qual, pelo visto, localiza-se em pleno centro de Brasília (DF).

O que espanta, porém, é que o novo governo federal, presidido por uma vítima da repressão criminosa comandada pela gente fardada no poder, resolveu proceder como se nada tivesse a ver com isso. “Fomos mesmo condenados? Bem, ainda não tivemos tempo de nos ocupar do caso”.

Vale a pena, pois, indicar a seguir os principais pontos conclusivos dessa sentença condenatória, que mostra o caráter invariavelmente dúplice das classes dirigentes brasileiras: civilizadas por fora e selvagens por dentro. Os trechos em itálico são transcrições literais do teor do acórdão.

1) “As disposições da Lei de Anistia brasileira [tal como pervertidamente interpretada pelo Supremo Tribunal Federal], as quais impedem a investigação e sanção de graves violações de direitos humanos, são incompatíveis com a Convenção Americana de Direitos Humanos e carecem de efeitos jurídicos”. Em conseqüência, decidiu a Corte que o Estado brasileiro tem o dever de submeter os agentes públicos que praticaram tais violações às sanções penais previstas em lei, mediante processos a serem movidos perante a justiça ordinária e não no foro militar. A Corte fez questão de precisar que, malgrado o tempo decorrido, os réus não podem invocar a prescrição penal a seu favor.

2) “O Estado brasileiro deve oferecer o tratamento médico e psicológico ou psiquiátrico que as vítimas requeira”.

3) O acórdão da Corte em seu inteiro teor, salvo as notas de rodapé, deve ser publicado no Brasil, no Diário Oficial.

4) Dentro de um ano, a partir da notificação da decisão condenatória, o Estado brasileiro deve realizar um ato público de reconhecimento de sua responsabilidade internacional, a respeito dos fatos ocorridos durante a chamada “Guerrilha do Araguaia”, em presença de altas autoridades e das vítimas.

5) O Estado brasileiro deve implementar, em prazo razoável, um programa ou curso permanente e obrigatório de direitos humanos, dirigido a todos os níveis hierárquicos das Forças Armadas.

6) O Estado brasileiro deve tipificar em lei o crime de desaparecimento forçado de pessoas.

7) “O Estado brasileiro deve continuar desenvolvendo as iniciativas de busca, sistematização e publicação de toda a informação sobre a Guerrilha do Araguaia, assim como de informação relativa a violações de direitos humanos ocorridas durante o regime militar, garantindo o acesso à mesma”.

8) O Estado brasileiro deve pagar às vítimas da “Guerrilha do Araguaia”, ou a seus familiares, uma indenização por dano material e moral.

9) O Estado brasileiro deve realizar uma convocatória em, ao menos, um jornal de circulação nacional e um da região onde ocorreram os fatos da “Guerrilha do Araguaia”, a fim de que, por um período de 24 meses, contado a partir da notificação da decisão condenatória, os familiares das vítimas apresentem elementos para identificação das pessoas desaparecidas.

Em conclusão, declarou a Corte que ela irá supervisionar o cumprimento integral de sua decisão, e determinou que, dentro de um ano, a partir da notificação do acórdão, o Estado Brasileiro apresente à Corte um relatório sobre as medidas adotadas para a sua execução.

Se o Estado Brasileiro não apresentar tempestivamente esse relatório, ou apresentá-lo sem justificativa aceitável quanto ao não-cumprimento de qualquer parte da condenação que lhe foi infligida, o nosso país voltará ao banco dos réus.

Mas não se alvoroce, caro leitor. Os nossos oligarcas têm uma longa experiência para enfrentar situações como essa. No Brasil, o país legal é sempre muito diferente do país real. Durante quase meio século, mantivemos a ilegalidade oficial do tráfico negreiro (“para inglês ver”) e sua cruel efetividade no dia-a-dia, com o beneplácito do monarca, das autoridades governamentais e dos magistrados. Até hoje, como todos sabem, inclusive os figurões de Brasília, ainda há trabalho escravo em nosso país.

Acontece que, como diz o ditado, “a morte liquida todas as contas”. Nossos dirigentes vão obviamente esperar que os últimos assassinos, torturadores e estupradores, sobreviventes do regime militar, entreguem suas almas a Deus (ou ao demônio), para informarem a Corte Interamericana de Direitos Humanos de que sua decisão (é bem o caso de dizer) foi religiosamente cumprida.

*Fábio Konder Comparato é professor titular emérito da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo (USP), doutor honoris causa da Universidade de Coimbra e doutor em Direito pela Universidade de Paris.

Fonte: Carta Capital

Disponível em http://www.cartacapital.com.br/politica/fazendo-de-conta-de-que-nao-e-conosco

Um comentário:

  1. O Brasil vem progredindo em alguns aspectos, mas ainda muito timidamente. O elemento econômico é o principal. Por que será? Nos demais, entretanto, o progresso é muito tímido e na medida em que aquele elemento necessita para continuar a crescer. Outras dimensões chamam atenção quando relatórios internacionais ou exames nacionais são realizados. Veja-se a educação, nossas melhoras são tão solúveis, que qualquer estatístico de esquina saberia reconhecer que a taxa de evolução desta dimensão posta em contato com a realidade não passa de um erro percentual, muito famoso nas pesquisas eleitorais, mas que não sei por que nestas pesquisas eles parecem simplesmente desaparecer do universo matemático como num "passe de mágica". Veja-se ainda na corrupção! Nesta a coisa é tão crônica, que não há magia que possa ocultar! Acabamos de cair algumas posições no ranking da ONG "Transparência Internacional", para complementar nosso orgulho e encher nossos olhos, digo, nosso futuro de carbono, recebemos também esta semana o prêmio "Fóssil do Dia" na COP 17. Segundo informações, principalmente pelo nosso magistral Novo Código Florestal em tramitação no Congresso. Confesso que não li, mas em todos os debates que vi, não parece muito bom e faria jus a este prêmio, não só porque é um retrocesso de imensa dilatação temporal (leia-se: digno de um fóssil), mas também porque como bem sabemos, com uma maior emissão de carbono estaremos exaltando os fósseis na natureza de uma forma tão singela que só os nossos pulmões e a camada de ozônio podem perceber. Tudo isso para dizer que na Política e no Direito, em nosso país, não poderia ser diferente, eis que são a base de dominação da sociedade que ainda crê numa espécie de legitimidade sem representatividade e num Direito que mais parece um queijo suíço, cheio de buracos por onde os parasitas da elite empresarial e executiva fogem quando são escandalosamente flagrados com a "boca na botija", digo, no "queijo". É tanto queijo, por aqui que penso ser por isso que sempre acaba em pizza! Só não sei se os organismos internacionais estão dispostos a colocar a cereja no bolo, ou melhor, a calabresa na pizza. Mais talvez seja melhor "pagar pra ver", afinal de contas, se o Brasil receber, por exemplo, uma sanção pecuniária, o dinheiro vai mesmo é sair do bolso do povo! Eu amo a política não na forma que vejo, mas na essência, amo também meu país antes mesmo daquela, de forma que não critico para satirizar ou fazer rir, mas para colaborar com um Estado melhor e exercitar a política tem andado tão solitária, abandonada por nossa sociedade. Espero que não seja mais uma cena política "para inglês ver", mas que a faxina ministerial em curso possa ser o começo do fim de uma agonia, fruto de uma avidez por um país mais justo e uma política mais honesta.

    Adriano Gomes Fonseca

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