Pelo Professor Doutor Eduardo Manuel Val
Analisar a onda revolucionária que tem atingido nas últimas semanas diversos estados árabes exige considerar toda sua complexidade e ainda diferenciar os árabes dos muçulmanos. Falamos de 22 países de maioria religiosa muçulmana, mais de 200 milhões de pessoas, integrantes da chamada Liga Árabe, fundada em 1945, ¾ deles inseridos em democracias constitucionais formais, seja na vertente monárquica ou na republicana, que se estendem desde o Marrocos até a Turquia numa cartografia óbvia que une a meia lua que vai do Magreb africano à Turquia, mas também passando por Iêmen e toda a Península Arábica. A influência confessional islâmica é mais ampla e se alarga em direção ao sudeste asiático chegando a países como Bangladesh, Malásia e Indonésia, por um lado, e no sentido do centro da Ásia apontando as ex- repúblicas soviéticas do Cáucaso e suas ramificações que alcançam diversas regiões da China. Porém, nesses casos sairíamos da esfera da língua, costumes e tradições estritamente árabes para entrar em um universo de 55países e 1,4 bilhões de habitantes que professam a fé do Islã e são chamados de muçulmanos.
Nesta abordagem tentamos chamar a atenção sobre dois eixos que se destacam nesse recorte: 1) as características destas ditaduras e sua legitimidade constitucional e,
2) o impacto econômico do atual momento da última crise global e suas projeções.
Para o primeiro eixo devemos observar que aparentemente este processo se inicia com a rebelião em Tunísia, que levanta a cidadania contra o ditador Zine el- Abidine Ben Alí (73 anos) e o derruba, cansada de sua corrupção e indignada pelo aumento dos preços dos produtos básicos. No contexto de uma sociedade de comunicação globalizada isto foi o estopim para uma série de protestos que simultaneamente foram se sucedendo no Egito, Marrocos, Jordânia, Iêmen, Sudão e Argélia.
Atualmente o epicentro deste fenômeno se encontra no que acontece com as forças populares que ocuparam a Praça de Tahrir, no centro do Cairo e com a rodada de negociações, forçada pelos Estados Unidos, entre os partidários do governo de Hosni Mubarak, (82 anos), chefiados por Omar Suleiman (75 anos) e a oposição, que inclui setores como a anteriormente proscrita Irmandade Muçulmana, o Nobel da Paz, Mohamed El- Baradei, líder da Associação Nacional pela Reforma (ANR), o partido liberal Wafd e o esquerdista Tagammu.
Uma abordagem simplista corre o risco de uniformizar as causas e igualar os possíveis efeitos do que venha acontecer na praça Tahrir. Este local tem um sentido simbólico que deve ser considerado.
A praça recebeu esse nome, que significa liberação, quando as forças dos jovens militares nacionalistas liderados pelo coronel Gamal Abdel Nasser derrocaram a monarquia corrupta do rei Farouk na década dos 50. Nasser se transformou rapidamente em um herói nacionalista de projeção regional e internacional. Devolveu o orgulho ao Egito e aos árabes ao ocupar o canal de Suez, desafiando aberta e simultaneamente antigas potências coloniais como Grã Bretanha e França, e ao capitalismo ocidental que administravam empresarialmente a principal via de transporte marítimo entre Oriente e Ocidente. Este triunfo permitiu que Nasser fosse reconhecido como o Rais, o líder que promoveu o Pan-arabismo, lançou a união política com a Síria, através da criação da República Árabe Unida e colocou no Cairo a sede da Liga dos Países Árabes. Um estadista, ao mesmo tempo capaz de juntar esforços com o Marechal Tito, da ex-Yugoslávia e o Primeiro Ministro Nehru, da Índia, para criar o Movimento dos Países Não Alinhados, incentivando assim uma alternativa ao modelo bipolar da Guerra Fria.
Nessa época, os jovens oficiais dos exércitos árabes que tinham lutado pela independência contra as potências coloniais se encontravam subordinados a hierarquias dependentes das monarquias de origem tribal ou das repúblicas de cunho conservador ou liberal, criadas na região, sob influência britânica e francesa para legitimar sua influência num mundo pós-colonial, já pautado pelas lógicas dos Acordos de Bretton Woods. Insatisfeitos aderiram à posição pan-arabista, um misto de socialismo e nacionalismo laico. O partido Baath, do qual surgiria posteriormente Saddam Hussein é um claro exemplo deste movimento que impulsionou e inspirou revoluções que derrubaram a monarquia do Iraque, assim como os movimentos dos coronéis na Líbia e na Argélia. O caráter laico e não fundamentalista ficava claro na frente interna com o banimento de forças políticas com influência religiosa como fez o próprio Nasser com a Irmandade Muçulmana, tradicional grupo criado em 1928 e proibido em 1954.
Mas as divergências de interesses entre os próprios árabes, divididos por fragmentações tribais, disputas religiosas, entre sunitas e shiítas, a terrível derrota da Guerra dos 6 Dias (1967), ante o novo estado de Israel, que substituiu ao Protetorado de Palestina e a fortíssima intervenção norte-americana e de seus aliados ocidentais para garantir o acesso às fontes de petróleo, como tinha sido demonstrado desde a queda do movimento nacionalista encabeçado por Mossadeh (1953), no Irã, fizeram progressivamente naufragar as intenções pan-arabistas.
Estados Unidos passaram a exercer o controle da região principalmente através de dois aliados: a monarquia da família Al – Saud, na Arábia Saudita, pilar do fundamentalismo religioso muçulmano e guardiã dos lugares sagrados de peregrinação como Meca, e a monarquia semi- ocidentalizada do Xá do Irã., Mohamed Reza Pahlevi, reinstalado em Teerã.
Em 20 anos o movimento revolucionário estava diluído e ao falecer Nasser, na década dos 70, foi sucedido pelo seu vice-presidente, Anwar Al Sadat, também do exército egípcio. Após a crise do Petróleo e sem saída para uma profunda crise econômica, Sadat, através dos Acordos de Camp David, fez a Paz com Israel e reinventou o papel do Egito no novo contexto internacional, ainda que tenha pago por isto com sua própria morte ao ser assassinado por seus guardas em um desfile militar(1981). Isto permitiu que seu vice- presidente, o General da Aeronáutica, Hosni Mubarak, se tornasse por 30 anos o dono do poder no Egito e um fiel defensor dos interesses americanos na região, sobretudo após a derrubada de Pahlevi e o surgimento da República fundamentalista dos Ayotalás no Irã.
Mas não podemos esquecer que Mubarak governa uma república de 80 milhões de habitantes com um sistema constitucional absolutamente formalista e esvaziado de qualquer conteúdo democrático. A Constituição permite a eleição ininterrupta do Rais, que governava sem vice-presidente até agora, quando foi obrigado pelas circunstâncias a nomear a seu amigo, Omar Suleiman, Chefe das Forças de Segurança do Estado e padrinho de casamento de seu filho e candidato a herdeiro do poder, Gamal Mubarak. A Constituição também permitiu governar e estado de emergência permanente e ininterrupto e impor uma lei Eleitoral que impede praticamente a candidatura de qualquer outro partido que não seja o Partido Nacional Democrático (PND), curiosamente o mesmo do presidente e de seu filho Gamal, que é seu Secretário Geral.
Mubarak ou Suleiman representam essa elite constituída pela aliança dos setores militares e empresariais que tem se beneficiado do formalismo constitucional democrático e do marketing de moderação laica perante o fanatismo islâmico.
Foi seguindo os preceitos constitucionais, que o poder constituinte egípcio realizou a reforma de 2007, que mudou 59 artigos, em um processo que demorou 3 semanas e permitiu a entrada em vigor dos artigos 76 e 77 da constituição que não limitam a reeleição e colocam restrições severas em termos de maiorias procedimentais para a aprovação de candidaturas de partidos políticos para as eleições.
Nada muito diferente da figura do ditador argeliano Abdelaziz Bouteflika (74 anos), que depois das revoltas fundamentalistas de 1992, que custaram 200.000 mortos, na ex-colônia francesa, de 35 milhões de habitantes, conseguiu implantar o estado de emergência conforme processo constitucional e governa desde 1999 até hoje.
Na mesma linhagem encontramos Alí Abdullhah Saleh (69 anos), que leva 32 anos no poder no Iêmen, e que perante os distúrbios populares em sua capital Saana, anunciou que, como Mubarak, nem ele nem seu filho serão candidatos nas eleições democráticas marcadas para 2013.
Também temos na República de Sudão desde 1989, ao reeleito em 2010 por 64 % dos votos, presidente de origem militar, Omar Hassan al Bashir (67 anos), processado pelo Tribunal Penal Internacional (em 2009) por crimes contra a humanidade, pelo genocídio de Darfur.
No que diz respeito à Líbia, o coronel Muammar Al-Khadafi (69 anos) governa desde que derrubou o rei Idris I, 32 anos atrás com base nas normas constitucionais do texto de 1977 e tem como possível sucessor a seu filho, Al Saad.
Mas rapidamente tem reagido Mohamed VI, de Marrocos, que detém poder quase que absoluto conforme o artigo 19 da constituição, e Abdullhah II de Jordânia, tentando implementar mudanças nos seus gabinetes e reformas políticas e econômicas que permitam desativar movimentos revolucionários. Eles são jovens e governam coincidentemente desde 1999, mas são herdeiros de soberanos que governaram durante décadas monarquias parlamentares constitucionais, Hassan II, 38 anos, no governo do Marrocos, e Hussein, 46 anos, na Jordânia.
À mesma geração, porém no marco de uma república, pertence Bashar Al- Assad, presidente da Síria desde 2010. Ele é filho de Haffed Al- Assad, que se manteve no poder por 30 anos.
Concluímos que a Praça de Tahrir reflete o esgotamento de uma geração gerontocrática de governantes que, pertencentes ao exército ou com o apoio deste, seja sob a forma republicana ou monárquica, abandonaram os ideais independentistas e pan-arabistas posteriores ao fim da II Guerra Mundial e a fragmentação do Império Otomano e se perpetuaram no poder através de sistemas constitucionais formais que procedimentalmente garantiram a eles uma legitimidade jurídica formal que permitiu a parceria com as potências democráticas ocidentais. Todos eles encarnaram o modelo de líderes com forte carisma pessoal que pretenderam se eternizar no poder de alguma forma sucessória familiar.
Fogem a este modelo 3 estados: 1) o Irã, uma república com forte condicionamento teocrático, presidida por um presidente, Mahmoud Ahmadinejad, subordinado a um líder Supremo, Alí Khamenei, que pela sua vez preside o Grande Conselho de Ayatolás. Nas eleições de 2009, a revolta dos estudantes contra o fraude do governo foi sufocada pela repressão a cargo dos basijs, grupo de milícias religiosas, 2) Desde 1923, a Turquia, que guiada pelo grande líder nacionalista Mustafá Kemal Ataturk, se transformou em estado laico, republicano, com forte suporte do exército, apresenta um regime constitucional democrático (1924) e tem solicitado formalmente o ingresso na União Europeia ainda que atualmente seja governada por um partido confessional e 3) Arábia Saudita, monarquia absoluta, governada pela dinastia Al – Saud, desde 1927, que não tem sistema constitucional e se rege pela Sharia ( Kuwait, Emirados Árabes Unidos, Omán e Qatar, partilham basicamente as mesmas características).
Para o segundo eixo, devemos considerar as características econômicas desta região.
Com exceção de Líbia e Arábia Saudita (com seus satélites), os restantes estados não contam com divisas decorrentes do petróleo ou gás que permitam uma estabilidade econômica e um adequado desenvolvimento social como prova os baixos índices de IDH. Unicamente Turquia possui uma economia diversificada e se insere no conceito de democracia madura com razoáveis indicadores de sucesso de gestão pública ao ponto de atender as exigências de uma possível entrada na União Europeia.
Os estados afetados pelas revoltas populares registram alto crescimento populacional e alto nível de desemprego, fundamentalmente entre os jovens de até 25 anos. Existe um baixo nível de industrialização e não contam com uma agricultura tecnificada.
Cabe observar que como no resto do mundo, se registra uma migração importante e permanente da população das áreas rurais para os grandes centros urbanos. No caso do Cairo, estamos perante uma cidade de aproximadamente 8 milhões de habitantes com uma região metropolitana que chega aos 17 milhões sobre uma população nacional de 80 milhões. É a maior cidade da África e do mundo árabe e a décima-quinta maior metrópole do mundo. Tunes tem uma população aproximada de 1 milhão para um total nacional de 10 milhões.
No contexto da crise global que vem afetando as economias centrais desde 2008, tem diminuído sensivelmente o auxílio financeiro recebido de Ocidente e dos Países Produtores de Petróleo (OPEP). Estes subsídios se destinavam a manter artificialmente estáveis os preços dos produtos alimentícios e atualmente estas commodities registram alças inéditas, segundo indicadores da FAO, desde 1990.
A perda de credibilidade dos líderes e das classes políticas que sustentam a administração pública, como resultado da corruptibilidade sistêmica, por eles mesmos desenvolvida e tolerada, e a insatisfação das novas classes médias, surgidas a partir das melhoras econômicas parciais dos anos 70, 80 e 90, foi aumentando intensamente.
Com o acesso à educação facilitado nas universidades nacionais, mas também em centros acadêmicos estrangeiros as expectativas de incorporação ao mercado de trabalho em condições competitivas se elevaram, mas a incapacidade de absorção dessa mão de obra qualificada passou a gerar um acentuado patamar de reclamações e um sentimento de frustração com a falta de esperança para evoluir na dinâmica de transformação e ascensão das classes sociais. Nesse ponto o papel da mulher tem se tornado relevante e seu acesso à instrução, ainda que limitado, tem um poder realmente transformador e multiplicador da força de resistência.
Nesse último campo, até a corporação militar enfrenta uma erosão de prestígio impensável, diminuindo então sua capacidade para servir de apoio e respaldo para os governos alienados da sensibilidade social.
Os meios de controle social nas mãos do Estado tem perdido eficácia, como resultado das novas formas de comunicação e tecnologia, mas ainda assim existe uma forte sensação de sufocamento. A internet e a difusão de informação através das redes sociais como facebook e twitter tem permitido a melhora na circulação de notícias e na organização dos grupos de oposição. A força das imagens captadas facilmente pelos vídeos tradicionais e redes de telefonia móveis permite disseminar em tempo real os acontecimentos, impedindo sua censura completa.
Por outro lado, a incoerência entre o discurso nacionalista e as parcerias políticas e econômicas com Ocidente em geral, e Estados Unidos, em particular, tem minado a confiança de diversos setores importantes da sociedade, fundamentalmente entre os de perfil religioso.
Podemos concluir que a somatória desses fatores descritos nos dois eixos analisados contribuiu para chegar a um ponto de saturação da tolerância do povo com seus dirigentes. Os fatores econômicos e a estagnação política foram determinantes para que a população passasse a exercer o secular direito a resistência contra a opressão dos poderosos, quebrando o legalismo aparente/formal e exigindo um grau de transformação de tal magnitude que implica em processos de ruptura constitucional necessariamente violentos, já que desde o ponto de vista normativo a possibilidade de reforma é centralizada exclusivamente no próprio governante.
A partir de sua própria interpretação cultural da dimensão dos direitos humanos, principalmente os de caráter coletivo e social, os árabes se levantam contra seus dirigentes tradicionais e apresentam resistência aberta contra sua tentativa de continuidade através de descendentes e sucessores. Não se trata de uma luta pelos valores democráticos clássicos de ocidente, mas de uma revolução que clama desde a Praça de Tahrir, a exercer o legítimo direito a resistir o poder constituído que exorbitou os limites da dignidade humana, ao se liberar na procura de uma gestão do estado mais eficiente e destinada ao bem comum.
Esperamos que as negociações e as mediações que se realizam atualmente tenham como resultado uma transição para uma verdadeira mudança e não uma nova versão do postulado do Príncipe Don Fabrízio, personagem de Il Gatopardo, de Giuseppe di Lampedusa, quando afirma: “Si vogliamo que che tutto rimanga como è, bisogna que tutto cambi”.
Doutor Eduardo Manuel Val é Professor Adjunto da Faculdade de Direito da Universidade Federal Fluminense.
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